sábado, 21 de março de 2009

O grave dano social cartesiano

A ciência como instrumento e máscara da dominação de classe: eis o signo indiscutível da ideologia! Claude Chrétien
No tempo de Renè Descartes  (1596- 1650) a presunção geocêntrica já estava sepultada, mas a vela permanecia rainha da noite, e a fé continuava “iluminando” os pobres mortais. Quando a vela caia, e incendiava tudo, nada era culpa de Deus. Ele não tapeia suas criaturas. Isso era coisa daquele “mau gênio”, “manhoso e enganador”, mas investido no papel, diabo caricaturado na Meditação Primeira, meditação deveras primária.
A elucubração contemplava a generosidade celestial pelo molde já tradicional:
Até o Renascimento, o Ocidente praticamente desconhecia Platão. Mas alguns manuscritos gregos, comprados em Constantinopla, mudaram esse cenário. Entre eles, levados a Florença em meados de 1430, estava nada mais nada menos do que a obra completa de Platão. ABRÃO, B.: 136
"A região do mundo colhia, pelo menos parcialmente, a herança grega, e a combinara com a visão da natureza e a vocação do homem trazida pela tradição judaico-cristã." (LADRIÈRE, Les enjeux de la racionalitè, 1977)
Deus havia oferecido algumas idéias claras e precisas para encontrarmos a verdade, "desde que nos ativéssemos a elas, e não caíssemos no pecado". "O erro, o Mal entra pelo corpo para transformar o divino Bem da alma," e isso já bem ensinara Platão (cit. KELSEN, 1998: 3): “A terra, ou seja, a matéria, é contraposta à verdadeira natureza da alma, quer dizer, ao seu ‘ser boa’. A matéria representa o mal.” O “Escultor e Pai do Universo” havia colocado tudo aos nossos pés, de modo que “isentou a si próprio de qualquer culpa por futura ruindade.”
O racionalismo reconhecia o intento e a capacidade do Grande Arquiteto. Na onda platônica, aproveitando a maré, lá vinha Descartes, na carta à Mersenne (15/04/1630):
Mas eu não deixarei de tocar, em minha física, em várias questões metafísicas e particularmente nesta: que as verdades matemáticas, as quais chamais de eternas, foram estabelecidas por Deus e dele dependem inteiramente, assim como todo o resto das criaturas. Não receai, peço-vos, garantir e publicar em toda a parte que Deus é quem estabelece estas leis na natureza, assim como um rei estabelece leis em seu reino.
Tornado em Regras para Direção do Espírito*, lá se foi o trem:

Descartes nos diz com toda a clareza, na segunda parte do Discurso do Método, que uma legislação que é obra de um só vale mais do que a que foi elaborada por vários através das transformações da história, pois é mais fácil a um só seguir um plano racional e apartar-se das contingências que constituem os hábitos e os costumes dos habitantes do país.
PERELMAN: 36
O peregrino, ainda que raramente implicado, é, de fato, padrinho do absolutismo. Deu asas a Bodin**, e o tal Direito Divino, que desembocou nas loucuras dos luízes. Seu contemporâneo Armand Jean Du Plessis, Cardeal de Richelieu (1585 - 1642, na foto), primeiro-ministro de Luís XIII de 1628 a 1642, foi o mais notável arquiteto do absolutismo e da liderança francesa na Europa.
No universo político os afilhados cartesianos não são poucos: Thomas Hobbes e sua invenção, o puritano Cromwell; o astuto Rousseau e seu fruto, Napoleão; o casal Hegel & Marx, e seus filhotes, entre os quais destaco os mais salientes - Bismarck, Hitler, Mussolini, Lênin, Mao e Stálin, além de dúzias de clones alhures.
O essencial para Hobbes não era a desmistificacão do poder, mas antes a representação da ordem política como um gigantesco autômata, que autorizaria a intervenção de técnicos qualificados. Governantes sensatos, inspirados pela razão científica, poderiam modificar o curso da vida social num sentido favorável a maioria dos interessados.
BASTOS, Wilson de Lima; 173
O método
A má tese cartesiana, a má temática, a "quantofrenia", conforme Sorokin, ou a "aritmomania", como aduz Georgescu-Roegens, coroou o homo faber tal homo mathematicus. O universo-máquina passou a ser um vasto sistema matemático de matéria em movimento, um ‘universo material (onde) tudo funcionaria mecanicamente, segundo as leis matemáticas.’
A concepção do universo que por sua influência alcançou aceitação geral era um mecanismo dirigido por princípios matemáticos, sem cor, perfume, sabor e som. A ciência havia estendido os limites do universo, mas convertido em máquina sem vida, que marchava de acordo com forças capazes de ser formuladas matematicamente, não a expressão poética.
GUSDORF, Georges: 164
Pela arquitetura ordenativa-normativa, passou a ser possível, e recomendável, calibrar todas as ciências, especialmente a política:
Tal como uma casa construída por um só arquiteto será mais bela que aquela na qual vários construtores trabalharam, também uma cidade construída por gerações sucessivas não tem tanta ordem como a que foi construída de uma só vez [ele só não pode conhecer o tédio de Brasília!] do mesmo modo também as ciências, tendo sido construídas pouco a pouco, não possuem nenhuma certeza e não ensinam a ordem verdadeira das coisas. Por isso, seria preciso que alguém empreendesse, de uma vez para sempre, reconstrui-las e pô-las em ordem.
DESCARTES, cit. KOYRÉ, 1986: 44
Os cientistas políticos geralmente dão a impressão de estarem inclinados a considerar a política como uma espécie de técnica, comparável à engenharia, digamos, envolvendo a idéia de que as pessoas deveria ser tratadas pelos cientistas políticos mais ou menos da mesma forma com que os engenheiros lidam com máquinas e fábricas.
LEONI, Bruno, A Liberdade e a Lei: 19
Von Mises (Ação Humana - Um Tratado de Economia: 112) reforça:
Na construção de sua utopia, o engenheiro social substitui a vontade das pessoas pela sua própria vontade. A humanidade se dividiria em duas classes: de um lado, o ditador todo-poderoso e, do outro, os tutelados, que ficam reduzidos à condição de meros peões de um plano ou engrenagens de uma máquina. Se isto fosse possível, o engenheiro social não precisaria preocupar-se em compreender as ações das demais pessoas. Teria ampla liberdade de lidar com elas, como a tecnologia lida com madeira e ferro.
Nosso TriPulante Sorman reitera:

A culpa inicial cabe a Descartes. Ele foi o primeiro a negar a sabedoria inconsciente, persuadindo-nos de que só o que era demonstrável, era verdadeiro. Rousseau substituiu-o, imaginando que não havia leis fora das desejadas pelo homem. Finalmente veio Augusto Comte, que instalou de vez a universidade no positivismo, fez as ciências humanas oscilarem para a sociologia e eliminou todo o ensinamento sério da economia.
.À nova leva não era necessário utilizar nenhuma originalidade:

No modelo proposto por Descartes e seguido por Hobbes, a geometria era a única ciência que Deus houve por bem até hoje conceder à humanidade. Retomava-se Galileu, para que a língua da natureza era a matemática. O pensamento moderno é assim marcado por este ritual do pensamento a que logo se opôs Pascal com o chamado esprit de finesse. A matematização do universo desenvolve-se com Newton e atinge as suas culminâncias em Comte. Nos Estatutos pombalinos da Universidade, determinou-se expressamente que os professores usassem do e.g. para poder discorrer com ordem, precisão, certeza.
Respublica, JAM

O próprio Descartes esboçara as linhas gerais de uma abordagem mecanicista da física, astronomia, biologia e medicina. Os pensadores do século XVIII levaram esse programa ainda mais longe, aplicando os princípios da mecânica newtoniana às ciências da natureza e da sociedade humana. As recém-criadas ciências sociais geraram grande entusiasmo e alguns de seus proponentes proclamaram terem descoberto uma ‘física social’.
CAPRA 1991: 63
 O equívoco
 Para que o mundo parecesse regulado, era preciso que as leis descobertas em primeiro lugar fossem matematicamente simples. Descartes se vangloriava:  "A ciência nada mais era do que geometria.” O Determinismo faz-se inevitável consequência desta simploriedade, sentido da ordem fundamental, a segurança das ligações consubstanciada pelas ilusões simétricas:
Não havia propósito, vida ou espiritualidade na matéria. A natureza funcionava de acordo com leis mecânicas, e tudo no mundo material podia ser explicado em função da organização e do movimento de suas partes.
ALQUIÉ: 29
A certeza era o bônus adquirido por quem seguia a palpável regra, esteira rolante a facilitar o acesso ao verdadeiro, lógica percorrida em progressão contínua, ordenada, por isto pretensamente clara, do simples ao complicado, passo-a-passo, técnica aprendida na lógica dos antigos geômetras temperada com a álgebra. Pascal incitara. Platão sobrevivera. Partindo do pre(mal)suposto, Descartes descreve período que o condena de plano:
Não admito como verdadeiro o que não possa ser deduzido, com a clareza de uma demonstração matemática, de noções comuns de cuja verdade não podemos duvidar. Como todos os fenômenos da natureza podem ser explicados deste modo, penso que não há necessidade de admitir outros princípios da física, nem que sejam desejáveis.
FRAISSÉ (cit. PENNA, A. G.: 32) destaca a sutileza transplantada:

A história da psicologia, depois de Descartes, poderia ser escrita como seguindo um movimento dialético entre a ciência da psiquê e uma ciência naturalista do homem que recusara tanto o dualismo metafísico quanto o metodológico.
MICHEL POLANYi Personal Knowledge: 262; cit. ROSZAK, THEODORE, A Contracultura: 232) encontra o comum viés:

A neurologia baseia-se na premissa de que o sistema nervoso - funcionando automaticamente segundo as leis conhecidas da física e da química - determina todas as operações que normalmente atribuímos à mente do indivíduo. O estudo da psicologia revela uma tendência paralela no sentido de se reduzir o objeto a relações explícitas entre variáveis mensuráveis; relações que sempre poderiam ser representadas pelos desempenhos de um artefato mecânico.
Ao que comenta ROSZAK (idem, ibidem) :

Quando a consciência humana passa a ser concebida dessa forma, o passo seguinte consiste em substituí-la por uma máquina, tão boa quanto ela, ou melhor. Chegamos assim a ironia suprema: a máquina, que é uma criatura do ser humano, torna-se - de preferência na forma do processo de computarização - o ideal de seu criador. A máquina atinge o estado perfeito de consciência objetiva, e por isso torna-se padrão para todas as coisas.-
Desse modo o Direito assumiu o caráter teleológico, calcado em metafísicas e plantadas ideologias, por isso transformado em mecanismo ordenativo a realização das finalidades propostas pelo Estado; ou melhor, por e para seu jockey eventual:
“A racionalidade jurídica é uma imagem ideológica para legitimar o sistema jurídico positivo a partir de uma aparência de racionalidade, cujo fundamento é mais mítico do que racional, ou seja 'mitológico'.” (LENOBLE, Jacques e OST, François, Droit, Mythe e Raison, cit. COELHO, Luiz Fernando, Teoria Crítica do Direito: 128)
A escuderia veio pela Economia:
A teoria econômica veio a ser uma ampla empresa de terrorismo intelectual, cujo aspecto pseudo-científico serve, na realidade, de coerção para excluir todos os verdadeiros problemas da sociedade contemporânea. Seu exagerado profissionalismo, herdado de sua mitologia científica, e todo o aparato matemático que a rodeia, servem para mascarar seu objetivo ideológico, que transforma sua disciplina numa máquina para estabelecer as leis das relações de força que existem na sociedade, numa civilização materialista e produtivista, orientada totalmente para a acumulação de bens materiais. Seu dinamismo serve, na realidade, para legitimar a posse do poder em mãos daqueles que dominam o aparato produtivo, quer seja a tecnocracia, nos países ocidentais, ou a burocracia planificadora, nos países socialistas.
GUILLAUME, Marc & ATTALI, Jacques, cits. GOYTISOLO, J. V.: 94
É o que acontece com nossos hábitos, desde a proclamação da rês ex-pública, ora privada, e muito fedorenta.
Até mesmo Lênin (Materialisme et empiriocriticisme; cit. CHRÈTIEN: 131) se arvorou no cienticismo:
“O universo é um movimento da matéria regido por leis, e nosso conhecimento, não sendo senão um produto superior ao da natureza, só pode refletir essas leis.”
O “grande físico” soviético era produto de uma natureza rude e estúpida. Suas esdrúxulas e tirânicas leis foram reflexos da ignorância, ainda que os parcos conhecimentos estivessem a serviço de superar a natureza. Ironicamente, o ateu era, de fato, símbolo de crença, picada na qual transitam, alhures e impunes, devastadores científicos, filosóficos, políticos, antropológicos, ecológicos, jurídicos, sociais e econômicos.
“Criaram um mundo morto e de madeira, como se fora uma estátua talhada, sem nada vital nem mágico nele, em nenhuma parte.” (CUDWORTH, Ralph cit. BRETT, R. L: 13)

Podemos julgar uma filosofia por seus frutos. A visão reducionista-mecanicista-materialista cultivou inúmeras dicotomias, cismas, fragmentações, alienações: alienação de si (o vácuo espiritual) e, por conseqüência, dos outros; alienação da natureza (autômatos não podem sentir muito por outros autômatos - se somos apenas máquinas, podemos muito bem nos apoderar do máximo possível, conquistar e explorar a natureza por completo); a dicotomia entre conhecimento e valores, meios e fins, mente e matéria, universo de matéria e universo de vida, entre ciências e humanidades, entre ricos e pobres, industrializados e de Terceiro Mundo, entre gerações presentes e gerações futuras.
LEMKOW, A.: 15
A civilização, mesmo autocognominada católica, todavia, permanece induzida a seguir o penoso caminho, já por séculos enganada em todos os ramos do conhecimento.
O dualismo cartesiano, ao criar a bifurcação mente-matéria, observador-observado, sujeiro-objeto, moldou o pensamento ocidental, poucos filósofos discordando dele, cujos mais notórios foram Spinoza e Schopenhauer. No século XX essa discordância se acentuou.
(GOTTSCHALL: 189)
A humanidade contabiliza enorme gama de perdas irrecuperáveis, malgrado a compreensão e o reconforto do grande Werner Heisenberg (cit. CAPRA, Fritjof, Sabedoria Incomum, Conversas com pessoas notáveis: 16), há algumas décadas atrás:
“A cisão cartesiana penetrou fundo na mente humana nos três séculos após Descartes e levará muito tempo para ser substituída por uma atitude realmente diferente diante do problema da realidade.”.

A falha de Einstein

Descalabros

Agora chega. We can change. I hope.

O significado do corte epistemológico

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Notas
* *Regulae ad directionem ingenii. Obra incompleta, escrita provavelmente antes de 1628, impressa apenas em 1701.
* A responsabilidade absoluta do soberano exige e pressupõe a dominação absoluta de todos os sujeitos.” (BODIN, J., cit. Chevallier: 56)
“Não é um simples acaso que a idéia cartesiana de Deus como legislador do universo se desenvolva somente quarenta anos depois da teoria da soberania de Jean Bodin.” (ZILSEL,E., The sociological roote of science, The American Journal of Sociology)


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