domingo, 9 de março de 2008

O nascimento da Nomenklatura

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A teoria maquiavelista relembra que o poder político é exercido, por toda parte e sempre, por uma minoria e que o poder político conta tanto quanto o poder econômico. Os marxistas detestam esta teoria porque ela aplica-se nas sociedades ocidentais, mas admiravelmente bem à sociedade soviética. Os teóricos maquiavelistas não negam que os que detém o poder não o aproveitam para obterem vantagens econômicas, mas o poder parece-lhes ser o fenômeno primordial. Ora, a revolução que cabe melhor no esquema maquiavelista e pior no esquema marxista é a revolução soviética, típica tomada de poder por uma minoria que não era nem detentora dos meios de produção, nem representativa da massa da população, nem exprimia a classe socialmente dominante, mas que, organizada em partido, apoderou-se do Estado. Raymond Aron *
O DESPOTISMO era refreado por limitações aristocráticas, religiosas, cortes, assembléias, e relações civis já codificadas ou, pelo menos, respeitadass tradições. A estratégia marxista, todavia, não se detinha por nenhum obstáculo. Ou, por outra, derrubou-os todos de vez, num strike (1) multicriminoso. O ideal dimensionado tinha que ser atingido a qualquer custo. Calha a configuração da professora Marilena Chauí:
A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representação) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador. (2)
O único objetivo da implantação de qualquer ideologia é chegar ao cofre, e sair ileso.
As belas lições tomadas por Lênin, nas suas andanças pela Europa, donde extraiu o esquema autoritarista/terrorista demagógico expelido pelos ex-campeões Napoleão e Bismarck, transformaram-se num estratagema de duplo efeito: ao tempo em que mantinha seus compatriotas na mira de sabres e canhões, preparava-os para liquidar culturas adversárias:
"O período da Revolução Russa que se inicia em 1924 foi definido como termidoriano, em referência à Revolução Francesa." (MAESTRI, Mário & CANDREVA, Luigi, Antônio Gramsci: vida e obra de um comunista revolucionário: 228)
Além do aspecto aguerridamente nacionalista formulado por Napoleão e Bismarck, o estágio econômico germânico indicava estudá-lo e adotá-lo com todo o vigor, sem poupar métodos para apressar “um passo a frente” (3) na marcha para o socialismo preconizado pelo ídolo Marx. Afinal, o barbudo era daquela região. Pelo mais completo paradoxo, a organização econômica germânica era encarada essencial, tomada como absoluta lógica, pré-requisito no caminho do socialismo profetizado. On Left Infantilism mostra o intento na propositura de vetor com igual potência, se possível maior, para o confronto. Para tanto, usava o exemplo real:
Sim: aprendam com os alemães! A história caminha em ziguezagues e por vias tortuosas. Acontece que são os alemães quem, agora, lado a lado com o imperialismo bestial, incorpora o princípio da disciplina, da organização, do trabalho sólido, conjunto, com base na maquinaria mais moderna, na mais estrita prestação de contas e controle. E isso é exatamente o que nos falta. (4)
O incrível impostor vinha numa pobreza franciscana, parecendo despojado de ambições pessoais, exceto da única pertinente ao seu messianismo: o mais completo domínio, verdadeiramente explorativo, sobre o ignorante povo. Não necessitava Lênin da riqueza a qual tanto hostilizara; afinal, passou a morar nos palácios (no luxo de Gorki, onde passou os últimos anos da vida, curtia um amplo escritório de frente para monumental bosque), farta alimentação e toda a mordomia. Tinha todo o país a seus pés. As benesses do poder, portanto, não as dispensou e, como os absolutistas czares, optou por quadro próprio de funcionários, a Chancelaria Pessoal, descartando a participação dos “idealistas revolucionários”. A manobra esvaziou o sistema de gabinete prometido pelo “governo responsável”. Mais uma vez, L’etat c’est moi. (5)
Os métodos de centralização estatal paralisaram a iniciativa e o esforço individual dos sobreviventes. A tirania da ditadura acovardava o povo, lançando-o numa submissão servil; o terrorismo organizado rebaixara e brutalizara as massas, sufocando qualquer idealismo. Todo o sentido de dignidade do homem e do valor da vida, eram eliminados, cambiados à bestialidade:
A coação a cada passo transformou o esforço em amargor, o trabalho num castigo, tornou todos os aspectos da vida numa trama de enganos mútuos e reavivou os instintos mais baixos e mais brutais do homem. Uma triste herança para começar a vida de liberdade e fraternidade. (6)
O aparato da polícia secreta, o controle estatal da mídia, a intimidação dos intelectuais e a repressão à liberdade artística tudo isso representa tentativas adicionais de limitar e controlar os fluxos de informação. Na verdade, por trás de cada um desses elementos encontramos uma suposição obsoleta sobre o conhecimento: a convicção arrogante de que os que estão no comando - seja no partido ou do estado - devem decidir os que os outros devem saber. (7)
Plekhanov, um dos pioneiros articuladores do marxismo russo e da organização Iskra, a qual conduziu Lênin à proeminência, acusou-o de “adotar um espírito sectário de exclusividade”, que “confundia a ditadura do proletariado com a ditadura sobre o proletariado.” (8)
A denúncia alertava para onde corria a loco motiva, uma nova espécie de “bonapartismo ou mesmo uma monarquia absoluta, no velho estilo pré revolucionário.”
Trotski concordou com a ênfase de Plekhanov e qualificou o programa de Lênin como “louco.” (9)
Já o historiador Dmitri Volkogonov o teve como aquele personagem bíblico nada honrado:
“Lênin foi o anti-cristo. Todos os grandes transtornos da Rússia tiveram sua origem em Lênin.” (10)
Já em 1924 Goldman perdia todas as esperanças:
As autoridades centrais tentaram fazer com que o povo agisse de acordo com modelos que corresponderiam aos propósitos do Partido, cujo único objetivo era fortalecer o Estado e monopolizar todas as atividades econômicas, políticas, e sociais e até mesmo manifestações culturais. A revolução tinha objetivos totalmente diferentes pelas suas próprias características, era a negação do princípio de Autoridade e da centralização. Os objetivos e as tendências da Revolução eram diametralmente opostos àqueles do Partido Governante. A Revolução Russa demonstrou, além de qualquer dúvida, que a idéia do Estado, de Estado Socialista em todas as suas manifestações (econômicas, políticas, sociais e educacionais) está completamente falida. Nunca antes, em toda a História, a Autoridade, o Governo e o Estado demonstraram ser tão inerentemente estáticos, reacionários e até mesmo contra-revolucionários em seus efeitos, em resumo: a própria antítese da Revolução.
Demorou tal verdade vir à tona. Ainda há quem prefira a riqueza, em especia a alheia, mesmo custando milhões de vidas, e tanto infortúnio como os ocasionados por aquela plêiade de debilóides.
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Notas
* La lutte des classes, 1964, p. 194/195; cit. Schwartzenberg, Roger-Gérard, Sociologia Política, p. 233.
1. O termo é usado no esporte chamado boliche para designar a queda de todos paus no primeiro e único arremesso.
2. Chauí, Marilena, O que é Ideologia, p. 113; cit. Coelho, Luiz Fernando, Teoria Crítica do Direito, p. 337.
3. Lênin, a propósito de uma comparação com a Alemanha, panfleto, O Capitalismo Estatal, Collected Works, XXII, 516/17.
4. Lênin, Collected Works, XXII, 378.
5. O Estado Sou Eu: célebre concepção do excêntrico Rei Luis XIV; lembrado por Vera Zasulich em Iskra n. 70 de 25/7/1904.
6. Goldman, Emma, My Further Disillusionmet with Russia, 1924, cit. Woodcock, p. 148.
7. Toffler, Alvin e Toffler, Heidi, p. 81.
8. Plekhanov, G.V. Collect works, XIII, 7, 90-1, cit. em Johnson, Paul, p. 40 e seg.
9. Plekhanov, Trotski, cits. Johnson, Paul, p. 319.
10. Volkogonov, Dmitri, O Estado de São Paulo, 18/6/ 1995, p. A19.
11. Goldman, Emma, My Further Disillusionmet with Russia, 1924, cit. Woodcock, p. 148.

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