domingo, 30 de março de 2008

O mau tom de Bentham


Salve bravos carregadores,
"Mais longo o trabalho, maiores favores",
Sem ânimo ou vontade de sorrir,
sempre duros de cabeça e braço,
de originalidade nenhum traço
Sans géni et san esprit
F. Nietzsche 4
O aspecto ideológico da concepção juspositivista predomina em absoluto no pensamento de Bentham, cuja finalidade não é descrever o direito (especialmente o inglês) tal qual é, mas sim criticá-lo, para fazer com que seja modificado de maneira a corresponder às suas concepções ético-política
NORBERTO BOBBIO*
Robes
LATINOS ofereceram Maquiavel, Descartes, Rousseau e Comte; germânicos, Hegel, von Ihering, Marx e Weber; e anglosaxões, Bacon, Hobbes, Bentham e Mill:
Hobbes pertence, de direito, à história do positivismo jurídico: sua concepção da lei e do Estado é uma antecipação, verdadeiramente surpreendente, das teorias positivistas do século passado, nas quais culmina a tendência antijusnaturalista iniciada no historicismo romântico. (1)
O que o platônico Euclides (300 a.C.) fizera para a geometria**, Galileu para a física, Descartes para ambos, julga-se Hobbes, pupilo do último, à altura para revolucionar a política. A pretensa cientificidade reduziu a nação francesa à mera engrenagem, cujo dente era o o insignificante ser humano, na elucubração coadunada com a já clássica analogia do relógio, machina machinarum:
“Na própria introdução ao De Cive declara que, para se conhecer uma coisa, é preciso conhecer os elementos de que ela é constituída, dando o exemplo do relógio, cujo funcionamento só pode ser plenamente compreendido quando desmontamos.” (2)
Sua "ciência", todavia, só pode se impor pela força: "Hobbes combate a common law e afirma o poder exclusivo do soberano de pôr o direito, visto que isto é indispensável para assegurar o poder absoluto do Estado." (3)
Sucumbido o Leviathan na Revolução Gloriosa, o mecanicismo tentou retornar à Inglaterra pelos novos portões de David Ricardo, Malthus, instalados no "clube de engenharia político-econômica" de Jeremy Bentham, o fundador emérito da escola “utilitarista”.
Russell (2008:103) não perdoou:
"Há cem anos, viveu um filósofo chamado Jeremy Bentham, universalmente conhecido como um homem muito perverso."
Jeremy Bentham (17481832) vinha equipado com as indicações colhidas no continente, junto aos exitosos professores Holbach e Helvécio. Hayek conheceu as escalas:“C. V. Helvetius foi um racionalista cartesiano que se equivocou, de quem Jeremy Bentham teria reconhecidamente tirado suas conclusões.” (5)
Se as conseqüências de tão pernicioso equívoco permanecessem circunscritas às suas expensas, não teríamos experimentado tantas agruras e amarguras:
A lei era vista como imutável porque era ancorada na natureza, assim como a vontade da comunidade: os legisladores e juristas tinham meramente que averiguar o que ela era e como aplicá-la a situações concretas. O surgimento, no final do século XVIII, do 'historicismo', que dizia que as instituições humanas estavam sempre evoluindo, mudou essa visão tradicional da lei. Passou a se reconhecer que, como tudo o que se relacionava com o ser humano era resultado da vontade, tudo o que se relacionava com o ser humano era capaz de ser alterado - e aperfeiçoado - por meio da educação e da legislação. Na Inglaterra, que liderava o mundo nesses assuntos, foi Jeremy Bentham quem encabeçou o ataque às formas tradicionais de pensamento. Foi Bentham, mais do que qualquer outro pensador, que popularizou a noção de que as leis podem solucionar qualquer mal social. (6)
Von Mises sinalizou o desvio:
Com a Escola Histórica, a ciência política tornara-se uma doutrina de arte para estadistas e políticos. Nas universidades e em anuais, reivindicações econômicas eram apresentadas e proclamadas como 'científicas'. A 'ciência' condenava o capitalismo, tachando-o de imoral e injusto. Rejeitava como 'radicais' as soluções oferecidas pelo socialismo marxista e recomendava o socialismo estatal, ou, às vezes, até o sistema de propriedade privada com intervenção do governo. Economia não era mais questão de conhecimento e capacidade, mas de boas intenções. (7)
Pois não seria esta a configuração do partido nazista, do bolchevique e o mote do fascismo?

O desvio
Até as publicações de Bentham o utilitarismo carecia dos objetivos políticos. A partir de suas elucubrações, contudo, o legislador “sábio” deveria se utilizar de castigos e penalidades para harmonizar os interessesm especialmente o próprio. Estava inevitavelmente implícito, de novo, que o homem cujas convicções morais se chocassem com as da comunidade, ou melhor, com o interesse do governante, deveria ser coibido, suprimido banido do convívio.
O ideal nem era inglês, senão francês. Descartes foi o introdutor, professor direto de Hobbes, e indireto de Rousseau. Essas foram as asas da desatinada Revolução Francesa. Bentham assistiu o descalabro.
A comunidade francesa deixou de existir, em detrimento da representação governamental. Quem fosse contra o Governo, seria contra a Nação, merecendo, por isso, o calabouço, a guilhotina, ou o banimento. E o desdobramento, por Napoleão, ensinava quão trivial é domesticar o rebanho - basta ordená-lo.
Bobbio (De l´organisation, : 334) apreciou as intenções de Jeremy :
Deste modo revelava mais uma vez sua mentalidade tipicamente racionalista: um código unitário, coerente, simples, um código, pois, que pudesse valer como lei universal só podia ser obra de uma única pessoa, com princípios estáveis e idéias claras. 'O código deve ser completo ou, em outros termos, abarcar todas as obrigações jurídicas às quais o cidadão deve estar submetido.'
Evidentemente pensava nele mesmo. (8)
Importante é considerar os dramáticos instantes atravessados pela Grã-Bretanha diante daquelas peripécias napoleônicas. Necessitava a Coroa convencer seus súditos a se engajarem na luta total contra a França. Assemelhava-se ao período vivido pelo Príncipe; no caso inglês, mais recente, de Cromwell.
O liberalismo era "bonito, mas irreal"; não prometia imediata eficácia, sendo mister costurá-lo ponto a ponto, desde as elementares noções sobre educação e cultura.
A emergência das catástrofes empurravam governos a partirem para as soluções práticas, imediatistas e pouca conversa. Esta política pintada ética, científica, lógica e a psicologia baseada na associação de idéias pareciam formar eficaz simplificação da teoria política de Locke, na evidência aparentemente óbvia da justiça e da eficácia de se produzir a felicidade para o maior número possível de pessoas. No argumento de que toda a instituição, toda a lei justa deveria advir de sua utilidade social, naquela lei que produzisse ou dividisse a felicidade (entendida como escassa e materialmente divisível) para o maior número de pessoas, Bentham conseguia sensibilizar os pacatos cidadãos, como se a felicidade fosse um grande bolo que pudesse ser fatiado por algum justiceiro acobertado de nobres ideais. Ainda em nossos dias, por exemplo, Bentham seria levado à honra de alguma cadeira pública com seu slogan:
“A maior felicidade do maior número constitui medida do certo e do errado.” (9)
Note-se a linguagem numeral utilizada por Bentham já na pretensa “divisão” da felicidade e nas expressões pensadas cientifícas, exatas: “maior” por duas vezes, mais “número” e ainda “medida”, num parágrafo de apenas um verbo.
O espirituoso comentário de Pedro Demo poderia servir de resposta a Bentham:
“Felicidade não é lógica propriamente, porque é impossível ser feliz na forma. Felicidade é um fenômeno histórico, circunstanciado, ambientado, sem regras fixas, sem ritos inamovíveis. É surpresa. É só momento. Felicidade extensa é monotonia. Por isto, diz o poeta popular, o amor é eterno enquanto dura. Cientificamente isto é besteira, porque não cabe na lógica. Mesmo assim, é real, porque a eternidade do amor está na sua intensidade necessariamente momentânea e por isso de vibração avassaladora, por vezes paroxista, não na repetição monótona, chata, quadrada de algo que se torna rito. A ciência, por razões de método, apreciaria que a felicidade se debulhasse na monotonia repetitiva, porque nada mais mensurável é captável do que isto. Mas aí teríamos de preferir ciência à vida.” (10)
Não foram poucos os governos que optaram pela primeira. Os mais salientes foram os regimes bolchevique, nazista e fascista, e seus arremedos, mais ou menos fiéis.

Aprecie
O oportunismo do utilitarismo
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Notas
* Bobbio, N., 1995, p. 224.
** "Partindo de ideias platônicas universais como 'linha' e 'círculo', Euclides criou um sistema dedutivo para descrever as relações entre uma vasta série de figuras geométricas." Rohmann, C., p. 148.
1. Hobbes, T., cit. Bobbio, N., Thomas Hobbes, p. 101.
2. Idem, p. 76/77.
3. Hobbes, T., cit. Bobbio, N., 1995, p. 34.
4.
Acima do bem e do mal, p. 121
5. Helvetius, C. V., Bentham, J., cits. Hayek, F. A., Os erros do socialismo - Arrogância Fatal, p. 194.
6. Bentham, J., cit. Pipes, R., p. 269/70.
7. Mises, L., Uma crítica ao intervencionismo, p. 41
8. Bentham J., cit. Bobbio, N., 1995, p. 99/00.
9. Bentham, Jeremy, cit. Sabine, G., p. 595.
10. Demo, Pedro, Ciência, Ideologia e Poder, Uma Sátira as Ciências Sociais, p. 58.


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