domingo, 9 de março de 2008

No raiar do XX, a "força" da "razão"

Na medida em que o poderio da ciência e da técnica é não somente poderio do homem, mas poderio sobre o homem, a ciência é mediadora da dominação do homem pelo homem; e talvez por isso que vivemos numa agressão e numa agressividade permanentes: porque o nosso meio ambiente é considerado como imputável. PH Roqueplo (1)
A partir do último terço do século XIX, sob a influência dos grandes trabalhos sociológicos de Augusto Comte, H. Spencer (1820-1903), Fouillèe (1858-1912), Tarde (1843-1904), Durkheim (1858-1917) e da escola sociológica desenvolve-se e organiza-se a orientação sociológico-econômica: certos economistas admitem, então, dever a economia política integrar-se na sociologia, a fim de prosseguir na sua linha de progresso. Paul Hugon (2)
'É preciso que o Estado governe em acordo com as regras de ordem essencial', diz Mercier de la Rivière, 'e então deve ser todo-poderoso'. Segundo os economistas, o Estado não deve unicamente comandar a nação, também deve formá-la de uma certa maneira; cabe-lhe moldar o próprio espírito dos cidadãos, enchê-lo com certas idéias e fornecer ao seu coração certos sentimentos que julga necessário. Na realidade, não existem limites aos seus direitos nem ao que pode fazer; não reforma simplesmente os homens, quer transformá-los; talvez, se o quisesse, poderia fabricar outros! 'O Estado faz dos homens tudo o que quer', diz Bodeau. Esta frase resume todas suas teorias. (3)
Alberto Sorel elaborou 8 volumes sobre A Europa e a Revolução Francesa, entre 1885 e 1904, para sobejamente demonstrar como este determinismo reanimou intelectuais e governantes. Acabou convencendo: “Toda a política dos filósofos se resume em por a onipotência do Estado ao serviço da infalibilidade da razão, a fazer da razão da razão pura uma nova razão de Estado”. (4)  A razão só provinha da força, para o magnífico equívoco de Tolstói, ainda em 1893:
Em outros tempos, se dissessem a um homem que, ao recusar-se a reconhecer a autoridade do Estado ele ficaria à mercê dos ataques de homens perversos - inimigos internos e externos - e que teria que lutar sozinho sujeitando-se a ser morto em combate, sendo portanto vantajoso suportar algumas dificuldades em troca de proteção, ele poderia acreditar, já que os sacrifícios que viesse a fazer pelo Estado seriam apenas pessoais e lhe garantiriam pelo menos a esperança de uma vida tranquila numa Nação estável. Mas no momento em que não apenas os sacrifícios parecem ter se tornado mil vezes mais penosos, mas os benefícios parecem ter desaparecido, é natural que os homens tenham chegado à conclusão de que a submissão à autoridade é algo totalmente inútil. (5)
Reinava o bizarro:
“O desencanto do mundo e o progresso da ciência calculista, levando à perda total não somente do mistério, mas do desejo de revelar o mistério, provocaram o irracionalismo da dominação.” (6)
A torpe reunião
"A chegada do século XX foi saudada por muitos como o verdadeiro início da Idade da Razão." (7)
O mundo, contudo, se abria aos animais:
“Por volta de 1900, Zurique era um imenso clube permanente. Recordemos alguns nomes significativos: Rosa Luxemburgo, George Plekhanov, Mussolini, Karl Radek, Lenine”. (8)
Einstein também andava por lá, mas se esquivou da turma. Alegou ser “herético.” (9)
A "Engenharia Social"
O “centralismo orgânico” de Charles Maurras recomendava aos franceses a cooptação ao governante todo poderoso do organismo nacional, coisa que em L’Lami des Hommes o Marques de Mirabeau já prenunciara, estabelecendo como seria este grande organismo:
“O Estado é uma árvore, cujas raízes são a agricultura, o tronco a população, os ramos a indústria, as folhas o comércio propriamente dito e as artes e os ofícios.” (10)
Era tempo dos arautos da engenharia humana; Júlio Verne (1828-1905) mostrava um mundo perfeitamente engrenado que iria aprimorar as relações, algo que entusiasmaria até alguns americanos, como Thorstein Veblen e ingleses, como Keynes.
Retomado pelo desespero do orquestrado levante operário, o nacionalismo prussiano se agigantou. O apelo nacional mostrava-se convincente arregimentador de forças na defesa da Pátria, vetor blocante da revolução universal do proletariado, ensaiada, predita e pedida por Marx. O reforço do Estado passava a objetivo geral e único. As propagandas impulsionaram os sentimentos. Fosse por jogo ou por vingança, os jovens ansiavam pelas glórias da guerra. A maioria dos russos, alemães ou franceses nunca tinha viajado de trem, nem conhecia as grandes cidades. O êxodo rural tomava impulso diferente e a corrida as cidades cada vez mais se acelerou, para o desencanto de Franz Kafka (1883-1924), que ainda se expressou elaborando a “sátira contra a burocracia e uma representação filosófica do isolamento do indivíduo no universo.” (11)
Os contornos dos cenários, do enredo, atores e torcidas organizadas já designavam o pavoroso roteiro do espetáculo a ser levado em cena por quase cem anos de estupidez, ao lamento do “herético” e quebra do sonho de Tolstói: a guerra generalizada, desenfreada, cada vez mais difundida como “momento de crescimento moral e produtivo da Nação”, “condição de progresso”, mas, principalmente, “ferroada que não deixa um país adormecer” (12)
Excursão ao além
A narrativa do jornalista Gilles Lapouge mostra como o ingênuo romantismo que se apossou da gente participante da I Guerra Mundial:
Os estudantes alemães agitavam seus chapéus mostrando alegria. Os camponeses franceses chegavam à estação ferroviária Gare Du Nord com uma flor no fuzil. Essas imagens dizem que agosto de 14 foi uma alegria, uma festa. Fizeram-nos sonhar que a guerra iria lhes permitir sair da rotina, cobrir-se de glórias e retornar a seu vilarejo com a auréola da vitória. (13)
Agosto vem em seguida de julho, o 14 do canto heróico e maciço, exemplo da Marselhese.
A ciência política contemplava o auge positivista em cálculos cartesianos e confronto de vetores, rede pela qual intrincaram-se cada vez mais percepções mecanicistas, fatalistas e preconceituosas disposições jurídicas, econômicas, sociais. Cruéis oportunistas italianos, que jamais chegaram a uma frente de batalha, pregavam a síntese do pensamento de Hegel e Sorel: “Esta é a hora do triunfo dos valores superiores. Esta é a hora da juventude. Só os medíocres e os velhos de vinte anos perderiam esta oportunidade.” (14)
Pierre Drieu chamava a guerra de “surpresa magnífica”; outros a entendiam como elemento catártico, depurador, entusiasmante, um privilégio. Julian Grenfel reportava-se Into Battle: “Estará morto aquele que não combate, e aquele que morre se engrandece.” (15)
O aperfeiçoamento dos transportes e comunicações ensejou que as líricas mensagens atingissem confins massificados, aliciados incautos. O desapego à vida no front excedeu razão e emoção. Erich-Marie Remarque registrou as atrocidades (16), mas o filme correspondente a sua obra - Nada de Novo no Front Ocidental - foi proibido na Alemanha.
-O choque dos trens
Cerca de 9 milhões de pessoas deram adeus à vida, neste primeiro grande conflito mundial. No segundo, foram 77. Não foi suficiente. Assim, para atender a demanda, aprontaram-se para entrar pelo túnel dialético recém construído, respectivamente, pela esquerda, puxando uma composição quase do tamanho da metade da Terra, a “científica” locomotiva marxista, aditivada pelas constatações evolucionistas-darwinianas aferidas em monitores dialético-cartesianos, magnificamente pilotada pelo “ás” de Zurich, Lênin; e pela direita, também autodenominada “científica”, a ainda mais obsoleta, mas tão pesada e até mais comprida que sua composição rival, a locomotiva da história sem fim, a plêiade “raça e tradição” do Expresso Nacional-positivista, de Maquiavel, Rousseau, Hegel, Comte, Cavour e Bismarck, o famoso trem Fascista, magnificamente pilotada no trecho pelo outro “ás” de Zurich, Mussolini, logo repartindo a demência com Hitler. Perfeitamente alinhados ao embate, cientes e decididos a se chocarem, de frente, já pelo início do século XX, eles arrancaram rumo ao colossal estrondo. Máquinas e vagões até hoje se imprensam, ecoando a mais completa insensatez. Einstein, da própria Zurich, assim lamentou:
“De tudo isso, não restará nada além de uma poucas páginas deploráveis nos livros de história, que retratarão suscintamente para a juventude de gerações futuras os desatinos de seus ancestrais.” (17) O “herético” pode ser profeta e testemunha. Dalai Lama também:
Enquanto no início do século muitos acreditavam que o progresso e o desenvolvimento dentro da sociedade deveriam ser obtidos à custa de estrita e opressiva arregimentação política, o colapso do fascismo, seguido mais tarde pelo desaparecimento da chamada Cortina de Ferro, revelou que o projeto era inviável. Foi mais uma lição da história provando que a ordem imposta pela força tem vida curta. (18)
“Muito mais importante do que as leis é o nosso respeito pelos sentimentos dos outros de um simples ponto de vista humano. (19)
Mais de um século distante de Bismarck, e meio da tragédia provocada por fascistas e comunistas, ainda nos resta limpar o terreno dos entulhos físicos e intelectuais, para livrarmos as gerações, atuais e futuras, das traiçoeiras minas, todas espalhadas de modo incalculável por aqueles desatinados. Imperativo é, pois, estarmos vigilantes, atentos em identificá-las para desativá-las, com isso até realizando o último pedido da admirável Princesa, recentemente falecida.
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Notas
1. Oito Teses Sobre o Significado da Ciência, in Deus, Jorge Dias de, Organizador, p. 151.
2. História das Doutrinas Econômicas, p. 384.
3. Tocqueville, A, O Antigo Regime e a Revolução, p. 157
4. Sorel, Alberto, L'Europe et la Revolution Française, T.I, Cap.II, cit. em Prelot, Marcel, Vol. II, p. 293.
5. Tolstói, Leon, O Reino de Deus está dentro de Vós, cit. Woodcock, G., p. 189.
6. Haguette, Teresa Maria Frota org., Haguette, André, Bruhl, Dieter, Oliveira, Manfredo Araújo de, Demo, Pedro, Dialética Hoje, p. 26/7.

7.Brzezinski, Zbigniew, A desordem, in Veja 25 anos - Reflexões para o futuro, p. 64
8. Thuillier, Pierre, Ciência e Subjetividade: O Caso Einstein, in Thomas, Henry e Thomas, Dana Lee, Einstein, Perfil bibliográfico: A Vida do Grande Cientista, in Einstein por Ele Mesmo, p. 143.
9. Idem, ibidem.
10. Marques de Mirabeau, cit. em Hugon, Paul, p. 392.

11. Kafka, Franz, cit. Burns, Edward McNall, Lerner, Robert E. e Standish, Meacham, História da Civilização Ocidental, do Homem das Cavernas as Naves Espaciais, p. 767.
12. Conforme o filósofo Ernest Renan, cit. Burns, Edward McNall, Lerner, Robert E. e Standish, Meacham, p. 667.
13. Lapouge, Gilles, O Estado de São Paulo,1/8/1994, p. A13.
14. Wohl, Robert, The Generation of 1914, p. 44 e sgs.
15. Grenfel, Julian, Johnson, Paul, p. 15.
16. Remarque, Erich-Marie, Nada de Novo no Front (Ocidental), célebre obra traduzida para inúmeros idiomas.
17. Einstein, Albert, Escritos da maturidade: artigos sobre ciência, educação, religião, relações sociais, racismo, ciências sociais /Albert Einstein, p. 9.
18. Sua Santidade o Dalai Lama, p. 186.
19. Idem, p. 76.

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