sábado, 2 de fevereiro de 2008

Spinoza & John Locke

O que nos falta é radicalizar a ideologia iluminista, que os Estados Unidos deixaram para trás. A concepção moderna de mundo não admite que haja um universal positivo. É por isso que a concepção moderna de mundo é não-religiosa. Hoje temos cada vez mais medo da diversidade. O Estado brasileiro nos dá freqüentes provas disso. Montesquieu já dizia que as leis ruins prejudicam as boas. Mas no Brasil de hoje, tudo tem de ser regulamentado. Isso é um perigo. Temos de ter um mínimo de lei absoluta para ter um máximo de experimentação. Mas o que se dá no Brasil é o contrário, temos o máximo de lei e um espaço cada vez menor para experimentar.
Antonio Cícero
A Inglaterra conquistou a independência ao romper com a ditadura romana. Até então o poder era exercido por espúria associação entre o real e virtual, ou seja, através de Rei preposto pelo Vaticano. Isso haveria de mudar.
Ao contrário de uma Espanha que se unificava em torno do catolicismo, expulsando judeus e muçulmanos e perseguindo as vozes discordantes, a Inglaterra conheceu a relatividade religiosa. A convivência com a desordem, outra característica da modernidade, marcou a vida religiosa inglesa. (Wells, t.III: 20)
Vickings, celtas, anglo e saxões nunca se prestaram à ovelhinhas. Willie constatou:
Naquele cadinho de idéias, naquele pulular de seitas religiosas e de movimentos políticos que foi a revolução puritana, abriram caminho todas as idéias de liberdade pessoal, de religião, de opinião e de imprensa destinadas a se tornarem o patrimônio duradouro do pensamento liberal.
Bobbio, N. 1993:50
Até hoje, em que pese incontáveis peripécias, nada de melhor foi inventado, nem pela matemática, tampouco pelas letras, muito menos pelas religiões:
A Nação inglêsa é a única da terra que chegou a regulamentar o poder dos reis resistindo-lhes e que de esforço em esforço, chegou, enfim, a estabelecer um governo sábio, onde o príncipe, todo-poderoso para fazer o bem, tem as mãos atadas para fazer o mal; onde os senhores são grandes sem insolência e sem vassalos, e onde o povo participa do governo sem confusão. Voltaire, cit. Chevallier, tomo II: 67
Locke enalteceu a gama como principal fonte, para não dizer a única científica, confiável e justa, da própria Ciência Jurídica. Foi claro: “Se eliminas a lei da natureza, eliminas, ao mesmo tempo, entre os homens, toda a cidadania, todo o poder, a ordem e a sociedade.” (Essays on the law of nature)
Simultaneamente, Baruch Spinoza (na gravura, cit. Bobbio, N. 1987: 145) antecipara a observação:
Ninguém transfere a outros o próprio direito natural de modo tão definitivo que depois não volte a ser mais consultado; mas o defere à parte maior da inteira sociedade, da qual ele é um membro.
LOCKE (Second treatise of civil government: 184) se perfilava: “Se o governo se exceder ou abusar da autoridade explicitamente outorgada pelo contrato político torna-se tirânico e o povo tem então o direito de dissolvê-lo ou se rebelar contra ele e derrubá-lo.”
KARL POPPER (p. 159) concedeui seu elevado aval:
De fato, o funcionamento da democracia depende, em grande medida, da compreensão do fato de que um governo que intente abusar de seu poder para estabelecer-se sob a forma de uma tirania se coloca à margem da lei, de modo que os cidadãos não só teriam o direito, como também a obrigação de considerar delituosos esses atos do governo e delinqüentes seus autores.
Impossível ser mais social: "A doutrina do direito natural apresenta, portanto, o modelo teórico de um regime ideal das relações humanas, que permite julgar as situações de fato e contribuir para sua acomodação." (Gusdorf: 163)
Não é, todavia, obra de nenhum gênio divino, nem social, muito menos político, ou econômico:

O Direito Natural não possui a função de ocultar interesses materiais ou propósitos políticos. Não é ideológico. As diretrizes que traça para o Direito Positivo não decorrem de convenções humanas, nem são seus princípios estabelecidos à luz de acontecimentos históricos. (Nader: 171)
É através do consenso, não do dogmatismo, que se resolvem as questões do interesse de cada um, portanto de todos:
O liberalismo é, primeiramente, uma filosofia global. Insisto neste ponto porque, muitas vezes, hoje, ele costuma ser reduzido a seu aspecto econômico, que deve ser colocado numa perspectiva mais ampla e que nada mais é do que um ponto de aplicação de um sistema completo que engloba todos os aspectos da vida na sociedade, e que julga ter resposta para todos os problemas colocados pela existência coletiva. Trata-se, ainda, de uma filosofia da história, de acordo com a qual a história é feita, não pelas forças coletivas, mas pelas forças individuais. Trata-se, enfim, - e é nisso que o liberalismo mais merece o nome de filosofia, - de certa filosofia do conhecimento e da verdade. Em reação contra o método da autoridade, o liberalismo acredita na descoberta progressiva da verdade pela razão individual. Fundamentalmente racionalista, ele se opõe ao jugo da autoridade, ao respeito cego pelo passado, ao império do preconceito, assim como os impulsos do instinto. Trata-se de grave erro ver o liberalismo apenas em suas aplicações na produção, no trabalho, nas relações entre o produtor e consumidor. (Rèmond: 26)
Foucault (1997:90) insiste:

O liberalismo deve ser analisado, então, como princípio e método de racionalização do princípio de governo - racionalização que obedece, e aí está sua especificidade, à regra interna de economia máxima. Enquanto toda a racionalização do exercício de governo visa a maximizar seus efeitos, diminuindo, o máximo possível, o custo (entendido no sentido político não menos que no econômico) a racionalização liberal parte do postulado de que o governo (trata-se, nesse caso, não da instituição 'governo', mas da atividade que consiste em dirigir a conduta dos homens em quadros e com instrumentos estatais) não poderia ser seu próprio fim. Não tem em si próprio sua razão de ser e sua maximilização, mesmo nas melhores condições possíveis, não tem de ser seu princípio regulador. Nisso o liberalismo rompe com essa 'razão de Estado', que desde o final do século XVI tinha buscado no exercício e no reforço do Estado a finalidade capaz de justificar uma governabilidade crescente e de regular seu desenvolvimento.
No reino da liberdade, os súditos podiam optar pelo outro paradigma:
O escrito de Descartes se difundiu amplamente no continente, em particular na França e nos Países Baixos, mas não teve o mesmo sucesso na Inglaterra. A filosofia experimental tal como ali se desenvolveu impedia uma aceitação fácil de qualquer sistema dedutivo, e o sistema de Descartes foi considerado tão gerador de dissensões, quanto o sistema extremamente materialista de Thomas Hobbes.
Henry: 71
Foi igualmente pela recusa do dualismo cartesiano, e pela defesa da observação e da análise contra o espírito sistemático, que Locke se impôs como 'mestre da sabedoria' aos filósofos franceses do século XVIII. CHÂTELET: 228. 
Muitos ingleses que emigraram para as colônias conheciam as idéias de Locke. De muitas formas, Locke também passou a fazer parte da tradição política das colônias. Os estudantes das colônia iam para a Europa em busca das universidades, voltavam influenciados por Locke e pelos filósofos iluministas do século XVIII. A política iluminista atravessava o oceano e frutificava na colônia. KARNAL: 62
A providencial travessia
Spinoza defendeu que Deus e Natureza eram dois nomes para a mesma realidade, a saber, a única substância em que consiste o universo e do qual todas as entidades menores constituem modalidades ou modificações. Ele afirmou que Deus sive Natura ("Deus ou Natureza" em latim) era um ser de infinitos atributos, entre os quais a extensão (sob o conceito atual de matéria) e o pensamento eram apenas dois conhecidos por nós. Wikipédia.
Baruch Spinoza (1632-1677) e John Locke (1632-1704) , por outra coincidência nascidos no mesmo ano, eram hóspedes  da Holanda, em Amsterdam (1) e Roterdã, "onde homens de todas as nações e de todas as seitas vivem na mais perfeita concórdia.” (Pinto: 51). Ambos rejeitaram as concepções  eclesiásticas e cartesianas (2):
Foi igualmente pela recusa do dualismo cartesiano, e pela defesa da observação e da análise contra o espírito sistemático, que Locke se impôs como 'mestre da sabedoria' aos filósofos franceses do século XVIII. Châtelet: 228
"A ideologia política do liberalismo originou-se de um sistema de idéias fundamentais que foram, inicialmente, desenvolvidas como teoria científica, sem qualquer significação política." (Mises, 1987: 158).
Locke rascunhou os acordes à modernidade coincidindo com  Spinoza: “Espinosa não faz senão duas referências muito breves a Hobbes.” (Pinto: 7)  "Spinoza, na mesma época que Locke, defendeu o liberalismo político. Para ele, direitos naturais são as regras do ser." (www.consciencia.org/spinoza)
O Tratactus (3) fora escrito para demonstrar a superioridade do governo democrático. Infelizmente a parte dedicada a esta forma de governo permaneceu incompleta, mas não incompreensível: "O que os divide é a diversa concepção do fim último do Estado, que para Hobbes é a paz e a ordem, para Spinoza a liberdade" (Bobbio, 1987: 145)
Ambos enfatizaram a cientificidade da tolerância, da relatividade, de certo modo se antecipando até mesmo a ciência quântica, na complementariedade: “A metafísica de Espinosa prenunciou a física de Einstein." (Sylvaia Zac, cit. Jammer: 114)

O panteísmo, como o relativismo, todavia, induzem à convivência pacífica; divergem daquelas religiões as quais, para justificarem suas existências, logo elegem os adversários, via-de-regra taxados demônios. Destarte, Spinoza (Tratado da Reforma do Entendimento, e do melhor caminho a seguir para chegar ao verdadeiro conhecimento das coisas: 12) foi banido da Congregação:
Foi precisamente por seu envolvimento com os liberais e livre-pensadores e, em decorrência, sua maneira heterodoxa de pensar e se comportar que valeram a Baruch acusação de herege e a conseqüente exclusão da sinagoga, sentença pronunciada em 27 de julho de 1656.
Não puderam (os homens), com efeito, tendo considerado as coisas (da natureza), como meios, supor que elas tivessem sido produzidas por elas mesmas, mas, tirando a sua conclusão dos meios que se acostumaram a obter, tiveram que persuadir-se de que existiam um ou mais diretores da Natureza, dotados de liberdade humana, que tivessem provido todas as necessidades deles e tivessem feito tudo para seu uso (dos homens). Não tendo jamais recebido (a) respeito do propósito destes seres informação alguma, tiveram também de julgar segundo o seu próprio, e assim admitiram que os deuses dirigem todas as coisas para uso dos homens, a fim de que esses se lhes liguem e para que sejam tidos por esses na maior honra. Do que resulta que todos, referindo-se ao seu próprio propósito, inventaram diversos meios de render culto a Deus, a fim de que fossem amados por ele acima de todos, e para que obtivessem que dirigisse a Natureza inteira em proveito de seu desejo cego e de sua avidez insaciável. SPINOZA, B,, Ética, Prop. XXVI, Apêndice 
Spinoza não era inglês, e falecera precocemente. Coube a Locke atravessar o canal, no barco do príncipe holandês. Na bagagem, o pupilo de Shaftesbury levava a Primeiro Ensaio Sobre o Entendimento Humano, a Carta sobre a tolerância, e os Dois tratados sobre o governo civil, todos endereçados à fundação da incólume democracia britânica.
Curiosamente, o holandês contemporâneo ainda observa a “tolerância” como valor cultural a ser preservado, "relativismo que devemos adotar como remédio contra a arrogância." (P. Feyerabend, cit. Silva: 310)
Infelizmente, contudo, até aos próprios, governantes sóem colocar as presilhas no gado:
Depois das críticas conjuntas das correntes utilitaristas no Reino Unido, historicistas na Alemanha e positivistas na França, o jusnaturalismo perdeu seu prestígio como teoria da moral e foi quase completamente abandonado, salvo por algum reacionário retardatado. Bobbio, N.  Locke e o Direito Natural: 62
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2- “...os cartesianos, para se defenderem da suspeita de espinosismo, verberavam estultantemente contra as opiniões e escritos do filósofo.” (Idem, ibidem)
3- Spinoza ansiava pela “ausência da guerra”, o que, curiosamente, não significa paz, porque esta é estado de espírito, não de ação. O ethos “leviatânico” é motivado pela manifesta covardia do traumatizado filósofo, assunto delineado em A perfídia científica de Descartes, Hobbes e Rousseauhttp://www.ieditora.com.br/.








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